Soluções construídas pelo CNJ buscam reduzir judicialização da saúde – Notícias CNJ – 10/06/20

Publicado em 10/06/2020

                                                   Foto: Luiz Silveira / CNJ

 

O direito ao acesso à saúde já é um tema notório em casos da Justiça e o aumento permanente da demanda revelou um dilema para o Judiciário: como tomar decisões que, de fato, vão beneficiar os pacientes, sem desequilibrar o sistema de saúde. Ao longo de sua história, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) busca contribuir para solucionar o impasse e, pelo debate e pela edição de normativos, prover estrutura e ferramentas para que a Justiça possa atender às demandas da sociedade.

Atualmente, são mais de dois milhões de ações sobre saúde, de acordo com dados recentes do Relatório Justiça em Números, do CNJ. A maioria envolve pedidos de acesso a procedimentos e medicamentos, muitos deles previstos na lista do Sistema Único de Saúde (SUS), mas negligenciados pelo Estado. E outros que nem sempre são cobertos pelo poder público ou mesmo pelos planos de saúde: são, por exemplo, os medicamentos em fase experimental.

Ainda que amparada no acesso ao direito à saúde garantido na Constituição Federal, a judicialização interfere na administração dos recursos de saúde, com impacto no planejamento das três esferas de governo: municipal, estadual e federal. Entre 2008 e 2017, foi registrado aumento de 130% nas ações de saúde, conforme o levantamento do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ/CNJ) “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução”. Os dados apontam que o setor de saúde foi responsável por 498.715 processos em primeira instância, distribuídos em 17 tribunais estaduais de justiça; e 277.411 processos em segunda instância, distribuídos em 15 tribunais de justiça estaduais. O impacto no orçamento do Ministério da Saúde foi um aumento de 13 vezes nos gastos em atendimento a demandas judiciais: em 2016, chegou a R$ 1,6 bilhão.

Para o ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês Gonzalo Vecina Neto, a judicialização excessiva é um problema para a execução das políticas públicas de saúde no Brasil. “O Judiciário deve exigir dos outros Poderes as políticas públicas que construam os direitos e deve verificar os resultados, mas não deve propor ou executar políticas, porque, ordinariamente, os recursos são mal utilizados, beneficiando apenas um demandante. A maioria das demandas que chegam à Justiça é fruto da falta ou da má execução de políticas públicas que afetam a vida de milhões de brasileiros”, ressaltou. Ele é membro do Fórum Nacional do Judiciário para Monitoramento e Resolução das Demandas de Assistência à Saúde, o Fórum da Saúde, instituído em abril de 2010 para ampliar esforços à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos conflitos que envolvam a saúde pública e a privada.

As discussões no Poder Judiciário sobre o aumento da judicialização em saúde têm um marco em 2009, quando foram contabilizados em torno de 500 mil processos em todo o país. Uma audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) reuniu especialistas para discutir esse fenômeno. A partir disso, o CNJ criou um grupo de trabalho para elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas referentes a essas demandas judiciais.

Decidir com embasamento

O primeiro ato aprovado pelo CNJ foi a Recomendação n. 31/2010, que reuniu medidas para subsidiar os magistrados e demais operadores do direito em decisões mais eficientes na solução das demandas sobre assistência à saúde. A recomendação orienta os juízes a ampliar as fontes de informações para concessão de pedidos e envolver a comunidade médica e científica e os gestores públicos na busca de solução.

Foi também em 2010 que o CNJ aprovou a Resolução 107, instituindo o Fórum Nacional da Saúde, com a incumbência de elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos. A principal preocupação era estabelecer ferramentas para subsidiar os magistrados com informações técnico-científicas e garantir decisão baseada em evidências.

De acordo com o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e membro na composição atual do Fórum Giovanni Guido Cerri, era muito importante, à época, que o Judiciário garantisse o acesso a uma saúde justa, mas com decisões conscientes. Seguindo as indicações já consolidadas na Recomendação n. 31/2010, as discussões sobre a formação de Núcleos de Apoio Técnico ao Poder Judiciário (NatJus) ganharam força.

“A criação do NatJus era importante para começar a criar uma consciência do problema da judicialização da saúde no Brasil e que isso precisava mudar e ser racionalizado por critérios técnicos, para decidir se uma ação nessa área era procedente ou não”, afirmou Cerri. A ideia inicial era que os tribunais federais e estaduais celebrassem convênios para disponibilizar apoio técnico de médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas.

O primeiro estado a criar um NatJus foi o Rio de Janeiro, com um projeto-piloto. No início, o TJRJ realizava muitos eventos destinados a discutir as questões de saúde, tanto no setor privado quanto público. “Muitas vezes, os juízes eram criticados, porque concediam uma antecipação de tutela ou liminar e depois tinham controvérsias. O fato era que, quando o juiz dava uma decisão, ele estava respaldado em um laudo médico trazido pela parte autora, indicando determinado tratamento, medicamento ou internação de urgência, por exemplo. O juiz precisava de um respaldo. Foi aí que surgiu a ideia de se criar um corpo técnico isento para auxiliar o magistrado”, explicou a juíza do TJRJ Valéria Bichara.

A magistrada, que fez parte da primeira composição do Fórum Nacional de Saúde, em 2011, disse que essa experiência e as de outros estados foram levadas para o Fórum, que discutiu as implicações de criação dos Núcleos de Apoio Técnico. “Estávamos no processo de construção de um projeto. A participação de todos os envolvidos permitiu que a resolução fosse construída de forma abrangente, podendo ser indicada a todos os tribunais do país e às diversas realidades do Brasil”, contou.

A própria composição do Comitê Executivo Nacional do Fórum contribuiu para o desenvolvimento dos projetos. Formado por representantes do Poder Judiciário, do Poder Executivo, operadores do direito, secretários estaduais e municipais de saúde e médicos, o grupo formulou outros normativos, como a Resolução CNJ n. 238/2016, que estabeleceu a criação dos NatJus nos estados, para oferecer notas técnicas e embasar as decisões dos magistrados, além da criação dos Comitês Estaduais de Saúde, a exemplo do Comitê Nacional. Além disso, o Fórum também realizou Jornadas de Direito da Saúde, em que foram discutidos e aprovados, entre os anos de 2014 a 2019, 103 enunciados – que são contribuições aos juízes sobre como conduzir o julgamento de questões de saúde.

Plataforma Digital

Em 2016, o Fórum assumiu um modelo de projeto mais arrojado, firmando com o Ministério da Saúde um Termo de Cooperação (TC n. 21/2016) que traria a expertise do Hospital Sírio-Libanês para o treinamento das equipes técnicas dos NATs, além de disponibilizar Protocolos Terapêuticos Clínicos (PTC) de vários medicamentos. Já em 2017, o CNJ lançou o projeto e-NatJus Nacional, plataforma digital que reúne notas e pareceres técnicos sobre temas judicializados em Saúde.

A construção do projeto incluiu a realização de audiência pública para discutir com a sociedade brasileira a prestação jurisdicional em ações relativas à saúde. Realizada em dezembro de 2017, a audiência pública deu voz a 30 instituições diferentes, desde gestores públicos, como os secretários municipais e estaduais de Saúde, até associações de pacientes de doenças raras. Em comum, as falas de representantes do Poder Público, da iniciativa privada, dos pacientes, da Academia e do sistema de Justiça abordaram a discrepância entre a demanda e a oferta de saúde no Brasil e as implicações do problema para o conjunto da sociedade.

A operacionalização da ferramenta que iria apoiar juízes nessas decisões foi oficializada em um segundo Termo de Cooperação, firmado com o Ministério da Saúde (TC n. 51/2018) e a participação do Hospital Israelita Albert Einstein, cuja equipe técnica passou a responder, 24 horas por dia, aos pedidos dos magistrados classificados como urgência. A parceria com o Ministério permitiu que o desdobramento dos projetos fosse financiado pelo governo federal, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (PROADI-SUS). O programa reúne hospitais filantrópicos de excelência apoiadores de melhoria das condições de saúde da população brasileira.

Então supervisor do Fórum e conselheiro do CNJ, Arnaldo Hossepian conta que, em 2018, o sistema de informática foi desenvolvido e, em janeiro de 2020, a plataforma registrou sua milésima nota técnica, baseada em evidências científicas. Promotores e defensores públicos têm acesso a todo esse material, composto a partir da solicitação de um magistrado. “Hoje temos duas frentes atacadas: a jurisdição técnico-científica e o caminho para buscar soluções pela via negociável”, disse. Isso porque, desde 2019, as questões de saúde foram inseridas também no escopo do portal Consumidor.gov, com o intuito de incentivar a conciliação, especialmente junto a operadoras de planos de saúde.

Impactos sobre a judicialização

Os resultados de todo esse trabalho já podem ser contabilizados. Em Tocantins, por exemplo, os dados científicos têm contribuído para a diminuição da judicialização e o aumento dos acordos pré-processuais. O estado possui, além do NatJus estadual, instituído em 2013, dois NatJus municipais, nas cidades de Araguaína e Palmas.

Segundo a coordenadora do Comitê de Saúde de Tocantins, a juíza Milene de Carvalho Henrique, os NATs subsidiam os magistrados e operadores do direito com informações técnicas, resolutividade, racionalidade, capacitação e efeito pedagógico para os consultantes: atributos valiosos para a desjudicialização da saúde. “As solicitações pré-processuais são provenientes da Defensoria Pública e do Ministério Público, que buscam subsídios técnicos antes de ingressar com o processo. Todas as notas técnicas são respondidas com pesquisa do material disponível na plataforma nacional, o e-NatJus. Todos os técnicos possuem acesso e já foram capacitados em oficina para elaboração de notas técnicas, ministrada pelo Hospital Sírio-Libanês”, explicou.

Apenas em 2019, os três Núcleos de Tocantins expediram um total de 3.757 notas técnicas. Desses, 2.645 foram emitidas pelo NatJus Estadual, das quais 1.526 emitidas na fase pré-processual e 1.119, na fase judicial. Além disso, houve redução de 72% no ingresso de novos casos nos anos de 2018 e 2019. “Com o passar dos anos, as consultas foram crescendo e os juízes perceberam a importância da informação técnica para as demandas em saúde. No ano de 2019, tivemos um índice de 95% dos magistrados de Tocantins consultando as notas técnicas, o maior até agora”, ressaltou Milene.

Os resultados apontam que as medidas definidas pelo CNJ a respeito da saúde produziram um Judiciário mais capacitado. Segundo a atual supervisora do Fórum Nacional de Saúde, a conselheira do CNJ Candice Lavocat Galvão Jobim, o fortalecimento dos comitês estaduais deve ser um dos focos de atuação do Fórum. “Iniciaremos inserindo critérios de avaliação no Prêmio CNJ de Qualidade que meçam a efetiva atuação do comitê de cada estado”, disse ela.

O foco é avaliar o empenho do tribunal em criá-lo e mantê-lo em funcionamento com efetividade, mediante encontros regulares e espaço adequado, permitindo assim efetivo diálogo interinstitucional. “Também vamos manter o trabalho até então realizado pelo Comitê Nacional no tocante ao aprimoramento técnico-cientifico das decisões judiciais, buscando sensibilizar todos os magistrados que julgam demandas da saúde a utilizarem os NatJus locais e o e-NatJus Nacional antes de prolatarem suas decisões”, ressaltou a conselheira Candice.

Para ela, a participação do CNJ é necessária diante da grande quantidade de processos referentes ao tema Saúde em tramitação no Judiciário brasileiro e, consequentemente, do impacto das inúmeras decisões judiciais sobre as políticas, a gestão e o orçamento público. “Fez-se necessária a participação do CNJ para tentar racionalizar o trabalho do Judiciário nessa questão tão delicada que é a saúde pública e permitir aprimorar a discussão. É preciso obter soluções por meio de diálogo entre os operadores do direito, os médicos e os gestores da saúde, unidos na busca de soluções adequadas para o enfrentamento do problema da judicialização da saúde”, afirmou.

 

Lenir Camimura Herculano

Agência CNJ de Notícias