Consultor Jurídico: Uma estéril década de microjustiça da saúde no STF reclama novas respostas
Publicado em 21/05/2019
Há exatos dez anos o Supremo Tribunal Federal promovia, ao longo de praticamente duas semanas (dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio de 2009) e com a participação de cinquenta especialistas, paradigmática audiência pública[1] sobre a judicialização da saúde no Brasil. Seu intuito, tal como noticiado no despacho convocatório do Ministro Gilmar Mendes, de 5 de março de 2009, era:
“Ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em matéria de Sistema Único de Saúde, objetivando esclarecer as questões técnicas, científicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas relativas às ações de prestação de saúde, tais como:
1) Responsabilidade dos entes da federação em matéria de direito à saúde;
2) Obrigação do Estado de fornecer prestação de saúde prescrita por médico não pertencente ao quadro do SUS ou sem que o pedido tenha sido feito previamente à Administração Pública;
3) Obrigação do Estado de custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticas públicas existentes;
4) Obrigação do Estado de disponibilizar medicamentos ou tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ou não aconselhados pelos Protocolos Clínicos do SUS;
5) Obrigação do Estado de fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listas do SUS;
6) Fraudes ao Sistema Único de Saúde.
Não obstante a aprendizagem institucional promovida desde então, o cenário de ineficácia do direito fundamental à saúde e de fragilidade da sua garantia ordinária no ciclo da política pública somente se agravou. Em 2019, a saturação da via judicial chegou a um ponto de inflexão dramático, porque a equalização legítima da tensão entre demandas individuais e soluções universais segue sem resposta desde seu diagnóstico enunciado abertamente pelo STF em 2009.
Historicamente o foco da análise tem sido primordialmente incidente sobre a “microjustiça”, ao invés de enfrentar estruturalmente a “macrojustiça”, tal como suscitado pelo Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da STA 175-AgR/CE. Todavia, não é demasiado lembrar que, desde 2009, o Supremo Tribunal Federal afirmava a necessidade de deslocar o problema do déficit de eficácia do direito fundamental à saúde para a seara da macrojustiça orçamentária atinente à consecução da política pública que lhe materializa:
“[…] em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem “escolhas trágicas” pautadas por critérios de macrojustiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc.
Nessa linha de análise, argumenta-se que o Poder Judiciário, o qual estaria vocacionado a concretizar a justiça do caso concreto (microjustiça), muitas vezes não teria condições de, ao examinar determinada pretensão à prestação de um direito social, analisar as consequências globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte, com invariável prejuízo para o todo. […] Ainda que essas questões tormentosas permitam entrever os desafios impostos ao Poder Público e à sociedade na concretização do direito à saúde, é preciso destacar de que forma a nossa Constituição estabelece os limites e as possibilidades de implementação deste direito.” (grifos nossos)
Ao longo desta década, por assim dizer, de prevalência da microjustiça, o Conselho Nacional de Justiça realizou jornadas[2], estruturou fórum temático[3] e tem buscado subsídios teórico-instrumentais para lidar com a expansão vertiginosa de pretensões judiciais em relação ao Sistema Único de Saúde – SUS. Mas nada disso foi suficiente para mitigar a trajetória[4] de crescimento de 130% no número de demandas entre 2008 e 2017.
Nesse contexto, é deveras frustrante constatar que o debate maturado direta ou indiretamente há uma década se repete como problema presente que voltará amanhã à tona na pauta do Plenário do STF em litígios quase totalmente semelhantes e, por óbvio, ainda não resolvidos.
No 22/05/2019, a pauta da Corte Constitucional brasileira enfrentará novamente a judicialização da saúde. Com exceção da ADI 5595 (que examina retrocesso no piso federal no setor), a controvérsia nuclear das demais ações pautadas reside no acesso a tratamentos e medicamentos em face da responsabilidade solidária na federação, como se pode ler a partir das teses abaixo:
EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 855178
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PEDIDO DE EFEITO MODIFICATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO ADEQUADO AOS NECESSITADOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. ALEGAÇÃO DE OBSCURIDADE EM RELAÇÃO À ABRANGÊNCIA DO TEMA DE FUNDO E NECESSIDADE DE DELIBERAÇÃO PELO PLENÁRIO PRESENCIAL.
TRATAMENTO DE SAÚDE. CONCESSÃO DE MEDICAMENTOS. MEDICAMENTOS NÃO RELACIONADOS NO PROGRAMA DE DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTOS EM CARÁTER EXCEPCIONAL. PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL. DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO SOCIAL. ALEGAÇÃO DE QUE OS ART. 196 E 198, II, DA CF SERIAM NORMAS MERAMENTE PROGRAMÁTICAS.
DIREITOS SOCIAIS. SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO REGISTRADO NA AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA/ANVISA. IMPOSSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. CF/88, ARTS. 1º, III; 6º; 23, II; 194; 198, II E §2º; 204 E 212.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1165959
DIREITOS SOCIAIS. SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO REGISTRADO NA AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA UNIVERSALIDADE, DA IGUALDADE E DA LEGALIDADE. CRIME HEDIONDO. CÓDIGO PENAL, ARTIGO 273, PARÁGRAFO 1º-B, INCISO I, REDAÇÃO DA LEI Nº 9.677/98. CF/88, ARTIGOS 37, 196, 197 E 200, INCISOS I E II.
Nos processos de repercussão geral arrolados acima, o debate soa repetitivo e relativamente estéril, porque é como se tivéssemos passado os últimos dez anos em busca tão somente de medidas paliativas que enfrentassem os sintomas do mal-estar na saúde pública brasileira, sem que conseguíssemos corrigir as causas desse adoecimento generalizado.
Já, noutra mirada, vemos a ADI 5595 que pauta o dever de financiamento suficiente[5] das ações e serviços públicos de saúde por parte da União em relação às pactuações assumidas equitativamente na federação brasileira e, sobretudo, à luz do princípio da vedação de retrocesso:
Tese
ORDEM SOCIAL. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. CUSTEIO PELA UNIÃO DE AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE. PISO PROGRESSIVO. CÔMPUTO DA PARTICIPAÇÃO NO RESULTADO OU COMPENSAÇÃO FINANCEIRA POR EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO E GÁS NATURAL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 86/2015, ARTS. 2º E 3º. CF/88, ARTS. 1°, CAPUT E III; 5°, CAPUT, E LIV; 6°; 20, § 1º 196; 197; 198, CAPUT, E § 1°.Saber se o ato normativo impugnado ofende os direitos à vida e à saúde e os princípios da vedação de retrocesso social; da proporcionalidade, o devido processo legal – em suas acepções substantiva e de proibição de proteção deficiente.
Saber se o ato normativo impugnado descumpre dever de progressividade na concretização dos direitos sociais.
Tamanha é a pressão orçamentária das demandas judiciais em saúde e tamanho e o desarranjo federativo nas pactuações que estruturam o SUS, que a pauta deste dia 22/05 evidencia – de forma amplificada – o verdadeiro nó górdio da política pública. Isso porque, de um lado, está a ADI 5595 que enfrenta exatamente uma das causas da macrolitigância financeira (como esta articulista e Fernando Scaff analisamos aqui), enquanto, de outro, repete-se o padrão temático de debate da microjustiça de pleitos individuais por medicamentos e procedimentos.
Não é sem razão, portanto, que, no dia 09/05/2019, estiveram em audiência[6] com o Ministro Dias Toffoli, na Presidência do STF, onze governadores para tratar exatamente dos julgamentos sobre a judicialização da saúde pautados para o dia 22/05/2019. A falta de participação adequada da União no custeio do SUS e no próprio enfrentamento dos vazios assistenciais que suscitam a origem das demandas judiciais em saúde foi a reclamação comum aos governadores do Maranhão; Mato Grosso do Sul; Rio Grande do Norte; Amapá; Ceará; Goiás; Paraíba; Rio de Janeiro; Rondônia; Roraima e Tocantins.
Diante de um planejamento sanitário pouco vinculante[7] para o percurso do gasto mínimo em ações e serviços públicos em saúde (ASPS) e diante do recalcitrante descumprimento das pactuações federativas assumidas na Comissão Intergestores Tripartite, o SUS padece concomitantemente de má gestão e subfinanciamento. Negar solução a tais problemas é simplesmente adiar o enfrentamento das causas e, por conseguinte, agravar os efeitos, por vezes, iníquos da judicialização da saúde.
Eis um diagnóstico absolutamente consensual, que foi bem sintetizado no seguinte excerto de nota conjunta[8] do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde – CONASS e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde – CONASEMS:
Em termos comparados, nos países com sistemas universais o gasto público corresponde a 70% do gasto total com saúde. Já no Brasil, esse índice corresponde a apenas 47,5% (OMS 2015). O Brasil não gasta pouco em saúde, porque nosso gasto total é de 9,6% do PIB. O insuficiente é o nosso gasto público que é de apenas 4,5%.
Conasems e Conass afirmaram incontáveis vezes que a União é responsável por um “desfinanciamento” progressivo do SUS. Isto porque em 1993, ela era responsável por 72% dos gastos públicos com ações e serviços de saúde reduzindo, em 2015, a apenas 43,08%. Tal redução, por sua vez, obrigou municípios, estados e o Distrito Federal a ampliarem o financiamento das necessidades em saúde. As consequências têm sido o retardamento da consolidação do SUS, no alcance do que determinam os preceitos constitucionais.
Há de se admitir a necessidade de qualificação da gestão e aprimoramento do modelo de atenção à saúde, adequando-os à realidade epidemiológica. Contudo, é imperioso afirmar que o subfinanciamento da saúde no Brasil é um fato e que se assevera nas dificuldades crescentes para a gestão.
[…] O SUS, em quase três décadas de existência tem sido capaz de produzir resultados de valor inquestionável para a população. Ainda assim, os problemas persistem e devem ser enfrentados para que o sistema público seja consolidado de modo a oferecer os melhores serviços e ações aos brasileiros. Sustentá-lo é uma obrigação do Estado e o compromisso dos gestores públicos. Saúde tem cura, mas tem custo! (grifos nossos)
Uma década se passou e os indicadores sensíveis de saúde da população têm francamente se deteriorado[9] (como, por exemplo, mortalidade infantil, mortalidade materna, cobertura vacinal e internações sensíveis às condições da atenção básica). Não podemos, nesse contexto, repetir soluções parciais já sabidamente incapazes de alterar os rumos que nos trouxeram até aqui.
Confirmar a cautelar concedida na ADI 5595 pelo Ministro Ricardo Lewandowski é solução de macrojustiça que se impõe ao Plenário do STF. A esse respeito, aliás, vale lembrar que recentemente foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição nº 39/2019, cujo primeiro signatário é o Senador Marcelo Castro (MDB-PI), atual presidente da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional e ex-Ministro da Saúde. A PEC 39/2019 tem por intuito assegurar financiamento proporcionalmente progressivo e fiscalmente sustentável para a saúde pública, em reforço e no mesmo sentido da cautelar deferida na ADI 5595 em 31/08/2017.
Para além do debate de curto prazo das milhares de demandas individuais que pretendem acesso a medicamentos e procedimentos, por vezes, em pretensões alheias ao planejamento sanitário e ao rateio federativamente equilibrado dos recursos vinculados à política pública de saúde, o STF tem – na ADI 5595 – a oportunidade de enfrentar impasse federativo na regressividade da participação proporcional da União no custeio do SUS.
Trata-se de conflito orçamentário que tem sido denunciado por ex-Ministros da Saúde[10], pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde e pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde. Como já dissemos desde o início, esta é uma fronteira de macrojustiça invocada lá atrás na primeira audiência pública para debater a judicialização da saúde, literalmente convocada há uma década pelo Ministro Gilmar Mendes na STA 175.
Quanto mais tempo levaremos até buscarmos enfrentar as causas para o adoecimento da política pública de saúde em nosso país? Outra judicialização é possível e necessária para que avancemos na efetividade desse direito fundamental, até para que o próprio SUS se fortaleça e a via ordinária da solução construída pela política pública seja restabelecida. Afinal, controle judicial bom é o que retroalimenta o planejamento e fortalece a execução da política pública em bases universais.
[1] Cujo acervo de documentos, falas, vídeos, bibliografia, jurisprudência, legislação correlata e contribuições se encontra disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude
[2] Os 103 enunciados das três jornadas estão disponíveis em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/03/fa749133d8cfa251373f867f32fbb713.pdf
[3] Como se pode ler em http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude, em 6 de abril de 2010, o CNJ, por meio da sua Resolução n. 107, instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde – Fórum da Saúde.
[4] Como noticiado em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/88612-demandas-judiciais-relativas-a-saude-crescem-130-em-dez-anos e em estudo disponibilizado em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/03/66361404dd5ceaf8c5f7049223bdc709.pdf
[5] Como suscitamos em https://www.conjur.com.br/2017-set-12/contas-vista-stf-reconhece-direito-custeio-adequado-direitos-adi-5595
[6] Noticiada em http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2019-05/no-stf-governadores-defendem-alivio-em-judicializacao-da-saude
[7] Como debatido por esta articulista e Francisco Funcia em https://www.conjur.com.br/2017-ago-15/contas-vista-entre-extremos-vinculacao-discricionariedade-sus-descaminha
[8] Disponível em https://www.conass.org.br/nota-conjunta-conasemsconass-financiamento-da-saude/
[9] Como se pode ler em https://www.scielosp.org/article/csc/2018.v23n10/3115-3122/
[10] Desde a criação da CPMF para o financiamento da saúde com o ex-Ministro Adib Jatene essa tem sido uma reclamação usual. Mais recentemente, citamos, por exemplo, as seguintes notícias https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ADMINISTRACAO-PUBLICA/494671-MINISTRO-DA-SAUDE-DIZ-QUE-SUBFINANCIAMENTO-E-PRINCIPAL-PROBLEMA-DO-SUS.html, https://exame.abril.com.br/brasil/temporao-quer-mais-r-50-bi-para-o-ministerio-da-saude/ e https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2804200818.htm
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2019