Judicialização da saúde – Valor Econômico – 12/6/19
Publicado em 12/06/2019
Nas próximas semanas, o Supremo Tribunal Federal julgará se o poder público é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo não incorporados às listas do Sistema Único de Saúde. O julgamento será uma oportunidade ímpar de se estabelecer bases racionais e objetivas para a questão, tal qual foi feito em relação à possibilidade de obrigar o poder público a fornecer medicamentos não registrados na Anvisa e em relação à solidariedade dos entes federados para o custeio de tecnologias deferidas judicialmente e não previstas no SUS.
O estabelecimento de regras objetivas se faz necessário por dois fatores. O primeiro fator é a perspectiva de que drogas cada vez mais caras ingressem no mercado, haja vista a guinada da indústria farmacêutica, que opta pelo desenvolvimento dessas drogas em detrimento das de baixo custo. Nesse cenário, pedidos de tecnologias de alto custo chegam corriqueiramente aos juízes do Brasil. A propósito, no mês de maio, noticiou-se a aprovação pelo FDA (Food and Drug Administration) – órgão americano similar à Anvisa – do registro da droga mais cara do mundo, a Zolgensma, produzida pela AveXis, da Novartis, para o tratamento de atrofia muscular espinhal. Seu preço foi fixado em US$ 2,1 milhões de dólares. Certamente, chegarão
pedidos dessa droga aos juízes do país.
O segundo fator diz respeito à absoluta discrepância de decisões judiciais que analisam pedidos de tecnologias de alto custo, o que gera iniquidade e desorganização no sistema, mormente em razão do crescimento exponencial das ações judiciais de saúde e, consequentemente, dos gastos da União, dos Estados e dos municípios com elas. Os gastos do Ministério da Saúde com a judicialização cresceram 4.600% de 2007 a 2018. Em 2016, esse
ministério despendeu R$ 1.157.375.425,35 para atender apenas 1.262 pacientes. Estima-se que, em 2018, ele tenha gasto R$ 1,3 bilhão para cumprir as decisões judiciais. Os Estados e os municípios vêm sendo ainda mais atingidos.
Diante disso, percebe-se que se faz necessário estabelecer um norte ao Poder Judiciário para que haja um mínimo de homogeneidade nas decisões proferidas nas ações que envolvem pedidos de saúde. Também se deve fixar limites à concessão de tecnologias em saúde por decisão judicial, baseando-se nos critérios de custo-efetividade, amplamente utilizados nos
processos de incorporação de tecnologias das várias agências existentes em países com sistema de saúde semelhante ao brasileiro.
Com o estabelecimento de bases sólidas para a apreciação dos pedidos deduzidos em juízo, é possível evitar a ingerência excessiva do Poder Judiciário nas políticas públicas de saúde, ingerência essa que muitas vezes passa ao largo da análise de questões de orçamento público, bem como dos impactos que uma decisão que concede um tratamento milionário pode gerar nas políticas públicas de saúde já fixadas.
Gastos da Saúde com decisões judiciais subiram 4600% de 2007 a 2018, ano em que somaram R$ 1,3 bilhão.
É compreensível que um médico, baseado nas melhores evidências, prescreva o medicamento de alto custo, assim como o é que o paciente venha a solicitar judicialmente a referida droga ao SUS. Todavia, cabe questionar o que leva um juiz a deferir tratamento milionário, que, na maioria das vezes, não poderá ser concedido a todos os pacientes acometidos pela mesma doença.
A psicologia comportamental trabalha com o conceito de “efeito da vítima individualizável”. No livro “Positivamente Irracional”, Dan Ariely explica esse efeito: “Quando temos um rosto, uma imagem e detalhes sobre alguém, sentimos pena, e nossas ações – e dinheiro seguem como consequência. Contudo, quando a informação não é individualizada, simplesmente não sentimos tanta empatia e, em consequência, não agimos”.
As razões para tanto já são conhecidas. Em primeiro lugar, a proximidade, que pode ser física ou puramente uma afinidade, faz com que nós nos tornemos mais propensos a ajudar vítimas que conhecemos. Também é determinante para tanto a vividez, em contraposição à imprecisão. Aquilo que nos é vívido faz com que a nossa dor ou empatia aumentem. Assim, imagens, detalhes e descrições ajudam de uma maneira decisiva para que tal efeito aconteça. Por último, existe o que os psicólogos chamam de sensação de “gota no balde”, segundo a qual as pessoas em geral tendem a acreditar que sua ajuda não fará a devida diferença para uma coletividade. Ao contrário, elas acreditam que sua intervenção, quando se trata de ajudar apenas um indivíduo, será muito mais efetiva.
Tais considerações podem ser analisadas em conjunto com a teoria de Daniel Kahneman, em sua obra “Rápido e Devagar”. Em linhas gerais, Kahneman divide a nossa mente em dois sistemas por ele denominados Sistema 1 e Sistema 2 (nomes difundidos na psicologia). O S1 “opera automática e rapidamente, com pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário”. É preguiçoso e intuitivo. Já o S2 é aquele que “aloca atenção às atividades mentais laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos. As operações do Sistema 2 são muitas vezes associadas com a experiência subjetiva de atividade, escolha e concentração”. É consciente e raciocinador.
O efeito da vítima identificável, assim como os vieses, são produtos do S1. Para que se possa ponderar todos os fatores envolvidos em um processo judicial, é necessário que se acione o S2, a fim de verificar se aquilo que foi encontrado pelo S1 é verdadeiro ou não.
O juiz não pode decidir o processo apenas com base no S1. Caso contrário, certamente cairá na armadilha do “efeito da vítima identificável”. Não se está dizendo com isso que o juiz não deva decidir pelo deferimento de medicamento de alto custo, mas sim, que ele deve estar ciente de
que, qualquer que seja a sua decisão, ela trará benefícios e prejuízos e que ele deve ponderar os interesses em jogo de forma racional.
Se decidir por determinar o fornecimento ao paciente, deve estar ciente de que o dinheiro para o cumprimento da decisão será remanejado dentro de um orçamento já existente e limitado, o que certamente implicará prejuízos a uma coletividade. Por isso, não se pode atribuir ao juiz que indefere o pedido de alguém acometido por doença rara a pecha de insensível. A esse juiz não falta empatia. Ela está apenas sendo direcionada a outras pessoas.
Ana Morozowski