JFRJ: webinário “Do assédio ao feminicidio” debate o papel do Judiciário no enfrentamento à violência contra a mulher*

Publicado em 04/04/2023

Evento gratuito foi transmitido pela plataforma Zoom, como parte das ações promovidas pela Justiça Federal do Rio de Janeiro em celebração ao Dia Internacional da Mulher (8/3).

As diversas faces da violência cometida contra mulheres simplesmente pelo fato de serem mulheres foram tema do webinário “Do assédio ao feminicídio: o Judiciário e o combate às múltiplas violências contra a mulher” , realizado no dia 30/03, pela JFRJ.

Participaram como palestrantes a juíza federal da 9ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, Débora Valle de Brito; a juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Maranhão, Marcela Lobo; a mestre em Psicologia e servidora da JFRJ, Aniele Xavier; e a coordenadora do Núcleo de Atendimento à Criança e ao Adolescente -NACA-, de Niterói, e responsável pela filial do Movimento de Mulheres de São Gonçalo, em Niterói, Susana Natal Mello. A diretora do Foro da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, juíza federal Paula Provedel, fez a abertura do evento.

JFRJ: webinário “Do assédio ao feminicidio” reuniu magistradas e especialistas para debater o papel estratégico do Judiciário no enfrentamento à violência contra a mulher

 

Estatística brutal

Ao serem questionadas sobre o que o Judiciário vem fazendo para enfrentar a questão, a diretora do Foro, dra. Paula Provedel, lembrou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu, em 2018, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher no Poder Judiciário . A medida tem por objetivo estabelecer ações de prevenção e combate à violência contra mulheres, garantindo a solução dos conflitos diante de atos de violência física, psicológica, moral, patrimonial e institucional. No entanto, em meio aos esforços institucionais, a magistratura vê os números da violência de gênero crescerem a cada ano, pontuou a diretora do Foro.

A diretora do Foro, juiza federal Paula Provedel, lembrou da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher no Poder Judiciário, instituída pelo CNJ, em 2018

 

A juíza federal Débora Brito acredita que o enfrentamento da violência contra a mulher no âmbito do Judiciário começa na capacitação permanente de magistrados, institucionalizada com a criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). “Hoje, na porta de entrada do Direito Penal, talvez 20% das demandas de crimes sejam as praticadas contra mulheres. Ao criarmos espaços para esse debate, estamos jogando uma lente sobre a questão. (…) Ao descortinar dados e expor o assunto, fica mais fácil, pelo menos, identificar o problema. E reconhecer o problema é o primeiro passo para adotar medidas que levem à alteração desse quadro”, defendeu a magistrada.

Desde 2014 atuando em vara criminal especializada no município de Caxias, quinta maior cidade do Maranhão, a juíza Marcela Lobo também falou sobre o crescimento de demandas que tratam de violência doméstica. “A distribuição de processos desse assunto girava em torno de 35 processos, em média, mensais. Hoje, em 2023, a média mensal de distribuição supera os 100. O volume de medidas protetivas, de incidentes, inquéritos e de distribuição de processos contra mulheres e meninas teve um crescimento absurdo. Isso mostra que o Poder Judiciário precisa dar uma atenção especial a essa questão”, afirmou a juíza.

A juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Maranhão, Marcela Lobo, foi uma das convidadas do webinário

 

Feminicídios

Os dados da violência contra a mulher são estatísticos, mas também revelam que corpos femininos de todas as classes sociais, raça e religião, inclusive as que ocupam cargos de poder, estão expostos a múltiplas violações. Dra. Débora Brito citou a pesquisa “Perfil das Magistradas Brasileiras e Perspectivas rumo à Equidade de Gênero nos Tribunais”, do CNJ. De acordo com o relatório, 54,7% das magistradas afirmaram já terem sofrido, no exercício da magistratura, algum tipo de constrangimento ou discriminação no trabalho pelo fato de serem mulheres. “O levantamento mostra que um alto número de magistradas já sofreu assédio e que as mulheres, mesmo na sua condição de poder, têm dificuldade de denunciar”, ressaltou a magistrada.

Dra. Marcela Lobo acrescenta que, apesar de a violência doméstica ser o quinto assunto mais discutido dentro do Judiciário, é preciso olhar a questão com humanidade. “Hoje, no Brasil, tramitam mais de um milhão de processos que tratam de violência doméstica. Nos cabe perguntar se isso se trata de uma demanda repetitiva, com um tratamento de massa, ou se, de fato, estamos conseguindo implementar tudo aquilo que preconizam os normativos de Direitos Humanos para mulheres, que é de dar adequado acesso, ter um olhar interseccional, entender quem é essa mulher que chega no Judiciário”, ponderou.

A assessora de Comunicação Social da JFRJ, área responsável pela organização do evento, Iris de Faria, afirma que a gravidade do tema acabou pautando as celebrações do Dia Internacional da Mulher na instituição. “Adoraríamos falar sobre amenidades, mas a urgência do assunto nos impede de fazer uma abordagem diferente. Chamamos profissionais de campos diversificados de conhecimento, todas muito qualificadas para debater o tema, com olhares que são complementares. Precisamos pensar o que cada um de nós pode fazer para enfrentar as diversas violências cometidas contra mulheres”, afirmou.

De grupos misóginos à violência marital: as dores da violência de gênero praticada dentro de casa

Os números do feminicídio são brutais e representam apenas a ponta de um processo bem mais profundo quando se fala de violência de gênero. Do discurso de ódio promovido por movimentos misóginos, até a construção simbólica empreendida historicamente pela mídia sobre corpos e comportamentos ditos “femininos”, a violência machista traz consequências devastadoras para a saúde emocional das mulheres.

Segundo a psicóloga e servidora da JFRJ, Aniele Xavier, o sistema de valores e de representações sobre como deveria ser uma mulher, muitas vezes reafirmado por discursos religiosos ou pela própria família, naturalizam a violência de gênero praticada dentro e fora de casa. “A ideia, por exemplo, de que a mulher que está sozinha não foi escolhida por um homem é uma violência. Esse medo de estar sozinha ou de ser vista negativamente pela sociedade por ter largado um casamento sustenta, muitas vezes, a permanência em relacionamentos abusivos”, afirmou.

Para a psicóloga, os efeitos das relações abusivas na saúde mental são incontáveis. “Esses ciclos de violência têm como base a destruição da autoestima e da autoconfiança da mulher (…). As vivências sequenciadas podem constituir trauma, gerando maior vulnerabilidade a transtornos mentais, como ansiedade ou depressão. Situações de violência mais intensas podem levar a um transtorno de estresse pós-traumático, categoria difícil de manejar clinicamente”, explicou a especialista.

Para a juíza estadual Marcela Lobo, a própria natureza da violência praticada dentro de casa, por envolver companheiros ou membros da família, já tornaria a denúncia difícil e dolorosa. “É uma violência praticada pelas pessoas em quem você confia, pelas pessoas que você ama, pelo pai, companheiro, um parceiro de vida. Essas mulheres não procuram o Judiciário porque têm vergonha, porque já conhecem a rota que precisam percorrer e pensam que vai demorar demais, ou porque elas acreditam que aquela violência não é tão importante assim. Muitas vezes a mulher só se dá conta da gravidade do que sofreu quando as integridades psicológica e física dela já estão profundamente violadas. Precisamos nos capacitar para receber essas mulheres. Identificar esses sinais de violência dentro dos espaços de trabalho, oferecendo acolhimento e fortalecimento”, falou.

Medo de denunciar

Um dos grandes obstáculos para que a violência se transforme em denúncia formal é o medo. De acordo com a dra. Marcela Lobo, muitas mulheres acreditam que denunciar seus abusadores faria a violência contra elas se agravar, porém as estatísticas mostram exatamente o contrário: a maior parte das vítimas de feminicídio nunca procuraram o Sistema de Justiça. “Quando falamos de feminicídio, 97% dos casos são de mulheres que nunca solicitaram medidas protetivas. Muitas já sofriam violência, mas não tiveram coragem e rede de apoio para pedir ajuda. Permaneceram no silêncio, afastadas da rede de proteção e acabaram sendo mortas. É fundamental dar notícia da violência para que sejam criadas estratégias de proteção”, esclareceu.

Para a magistrada, ainda há muita subnotificação, principalmente em relação a violências consideradas tabu, como o estupro marital. “As mulheres não se reconhecem vítimas de violência sexual dentro de uma relação e, ao se reconhecerem, não têm coragem de reportar essa violação. As vítimas se perguntam: como comprovo a violência sexual? A responsabilidade de provar é do Estado. O papel dela é noticiar, buscar ajuda para sair da relação abusiva. Ela não tem a obrigação de chegar na delegacia com um rol de testemunhas, com os documentos, como se fosse algo claro”, afirmou.

Dra. Débora Brito lembrou que, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça tornou obrigatória a aplicação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero . Com a medida, os tribunais brasileiros deverão levar em consideração, nos julgamentos, as especificidades das pessoas envolvidas, evitando decisões atravessadas por preconceitos e que perpetuem a desigualdade entre homens e mulheres.

A juíza federal da 9ª Vara Federal Criminal, Débora Valle de Brito, defendeu a capacitação permanente de magistrados sobre a violência de gênero

 

Redes de apoio

A coordenadora do Núcleo de Atendimento à Criança e ao Adolescente e responsável pela filial do Movimento de Mulheres em Niterói, Susana Natal Mello, defende que a informação é um importante aliado no combate à violência doméstica e familiar. “Muitas mulheres e crianças não se percebem vítimas de violência. Graças à informação, as mulheres estão ficando mais atentas com o que fazem com o seu corpo. A gente não se percebe sendo assediada, às vezes pelo superior, pela chefia imediata. Muitas têm medo de enfrentar essa situação”, disse.

A líder social acredita que só por meio de redes de apoio e de políticas públicas mulheres vítimas de violência conseguem sair de relacionamentos abusivos e reconstruírem suas vidas. “Todo município deveria ter espaços para abrigar quem não pode mais voltar para seus lares, nem ter contato com seus agressores. Muitas mulheres voltam para o abusador por conta da dependência financeira, da dependência afetiva. Precisamos de políticas públicas que permitam a essas mulheres ser amparadas e não retornarem para o ciclo de violência”, declarou.

Susana apresentou os projetos desenvolvidos pela ONG Movimento de Mulheres, entre eles, os de prevenção, promoção de direitos e assistência a crianças, adolescentes, mulheres adultas e idosas expostas a diversas formas de violência, com destaque para a violência sexual. Além da filial, em São Gonçalo, a instituição também está presente em Itaboraí, Niterói e no Complexo do Salgueiro, um conjunto de bairros e comunidades que convive com a realidade do narcotráfico. “O projeto que desenvolvemos no Salgueiro, o Vozes Periféricas, por exemplo, oferece atendimento interdisciplinar para fortalecer a autoestima das mulheres. Realizamos palestras, oficinas e cursos de capacitação. Atendemos a 60 mulheres diretamente e outras 240 indiretamente”, disse.

Clique para assistir a íntegra do webinário.

*Fonte: JFRJ

Compartilhar: